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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


25.07.14

Quando o tambor do desassossego entoa no coração da sanzala,


há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...


leio... leio SAUDADE...


 


Sento-me junto ao pequeno charco acabado de nascer,


puxo de um cigarro,


e finjo ver o mar a regressar da sombra das mangueiras,


as pequeníssimas películas de cacimbo alicerçam-se aos meus dedos,


ao longe, mulheres... e fogueiras,


e missangas de medos,


saltitando nos braços cansados de um esqueleto de papel,


oiço o bater fulgurante do zinco conta a solidão de um menino chorando,


 


Um dia a guerra o levará,


sua mãe morta rezará no altar da areia branca do faroleiro de pedra,


os meus dedos minguam quando um cadáver de insónia poisa no meu cigarro...


e espero... e não regressa o mar,


desce um corpo de prata dos coqueiros envelhecidos,


há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...


leio... leio SAUDADE...


e adormeço sem me apetecer,


 


Em criança brincava com silêncios e um velho triciclo em madeira,


acreditava nas flores,


acreditava que um dia..., que um dia voava como os pássaros,


envelheci, e o meu cigarro terminou quando um paquete de rebuçados atracou em mim,


transeuntes com pesadíssimos caixotes em madeira,


choravam...


e círculos de espuma saltavam à corda no cais dos caixotes em madeira...


perdi-me, e hoje... e hoje sento-me junto ao pequeno charco acabado de nascer,


 


O mar não regressará nunca,


 


E,


 


Quando o tambor do desassossego entoa no coração da sanzala,


há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...


leio... leio SAUDADE...


 


E leio sofrer!


 


 


Francisco Luís Fontinha – Alijó


Sexta-feira, 25 de Julho de 2014


03.06.13



foto: A&M ART and Photos


 


Transeunte paquete de imagens escuridão


semi-nuas entre palheiros com gaivotas em transe


e lâmpadas de incenso na janela da seara adormecida


sinto-me quando me sento nos confins desenhos dos muros em betão


correndo mar adentro


como âncoras de chocolate escorrendo pelos corpos despidos cansados...


 


O teu e o meu suspensos das nuvens agrestes que as sílabas constroem


sinto-me e sento-me perdidamente embriagado nas ondas oceânicas madrugadas


comia manhãs saboreando as páginas perdidas de uma sebenta ensonada


transeunte paquete de ti em minha mão ensanguentada


desces do pôr-do-sol e entranhas-te em mim


como se fosses uma livraria apaixonada.


 


(não revisto)


@Francisco Luís Fontinha



02.01.13

Talvez, um dia, quem sabe, junto ao cais da rocha conde de Óbidos, zarpe, visto-me de marinheiro, pego num pequeno barco, de preferência, em madeira prensada, por causa do peso, e zarpo, sem rumo, destino, endereço físico ou electrónico, deixo ficar tudo


Não acredito que o faças, e enquanto a oiço penso nas ruas onde brinquei, me sentei, caí e chorei, penso, recordo, e enquanto a oiço vejo-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão eu o esperava, abraçava-o e ele dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras,


Deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo


Sem rumo eu, hoje, dele, quando o mar, talvez laranjas, o mar pegava nele e levava-o a passear pelas ruas invisíveis da cidade iluminada por candeeiros a petróleo e flores com olhos verdes, dele, o mar vestia-o de marinheiro, e zarpava, corria e descia a calçada, sempre apressadamente abraçado à loucura, esquecia-se sobre a mesa da cozinha do fuso horário, parava sobre o equador, toda a noite, o baile de gala, dançavam, dele, nunca lhe ouvi uma palavra de amor, nunca, nunca lhe ouvi um sorriso nos lábios, nunca, sem rumo, eu, hoje, quando o mar, oiço-lhe os lamentos solitários das noites mórbidas que um desenhador constrói com um esquadro e uma régua, os lamentos


Que puta de vida a minha,


Claro que podia ser pior, dizia-lhe eu, e um dia deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo, e um dia deixo ficar tudo e mergulho no plasma das tuas veias e vou em direcção ao arco da lua, cerras os olhos, cerras os olhos e oiço-te


Que puta de vida a minha,


E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças


Que podia ser pior?


E escrevo-o, e digo-o para que um dia nunca o esqueças, nunca, nunca acreditei que o fizesses, e enquanto te ouvia pensava nas ruas onde brincávamos, nos sentávamos, caíamos e chorávamos, pensava, recordo, e enquanto te ouvia via-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão ele me esperava, abraçava-me e dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras, hoje não


E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças


Que podia ser pior?


Muito pior.


 


(texto de ficção não revisto)


@Francisco Luís Fontinha


Alijó


03.06.11

Que o meu corpo liquefeito fique electrão, em cabeçadas quânticas à volta do núcleo, a minha mão pendurada nos lábios da lua quando a noite desce até ao rio, que o meu corpo liquefeito arrefeça quando da manhã uma criança sorri para mim, e eu, e eu, olá menino porque te ris,


 


- Tens cara de palhaço, pareces o palhaço pobre que vi no circo em Luanda,


 


O paquete à minha espera, subo silenciosamente as escadas, e quando chego ao cimo, no patamar, olho para as pessoas e vejo as lágrimas da despedida, e de mim, e de mim ninguém na minha partida, e de mim ninguém na minha chegada, tenho cara de palhaço, pareço uma palmeira que espreita à janela com os olhos nus, a roupa dispersa no pavimento, a Fátima pequenina como uma roseira ao meu lado a brincar com uma boneca, a Fátima que ficou prisioneira do cacimbo, e dizem que a sua sombra caminha pelas ruas de Vila Nova de Famalicão, o paquete começa a esfumar-se na manhã de embarque, e sabes,


 


- Será longe Vila Nova de Famalicão


 


E sabes, o paquete começa em roncos adormecidos levado pela mão de um rebocador, e aos poucos ele mergulha a cabeça na areia e da Fátima apenas silêncios, o mar em tosse convulsa começa a espreguiçar-se na tarde, cresce, cresce, cresce e a terra engolida pela boca da saudade,


 


- Tens medo da água, maricas


 


E a saudade aumenta de peso, aumenta de tamanho, e em curvas apertadas as coxas da neblina quase que tocam o céu, céu e água, vómitos junto ao varandim e uns calções sentados no soalho a fazer desenhos com os olhos, a Fátima algures por aí, gorda, uma locomotiva de filhos que de ano a ano circulam pelos carris da infância, e eu continuo sentado no soalho a fazer desenhos com os olhos, tenho cara de palhaço pobre, I have a dream,


 


- A lua quando a noite desce até ao rio, que o meu corpo liquefeito arrefeça quando da manhã uma criança, a Fátima das criancices de Luanda, pegue na minha mão, e na terra que aos poucos nos engole, emerge, emerge a noite sem estrelas.


 


 


 


(texto de ficção)


Luís Fontinha


3 de Junho de 2011


Alijó


05.05.11


 


 


Eu, um perfeito idiota de crucifixo ao peito, pulseirinha nos braços e um anel, eu, um perfeito idiota de chapéu na cabeça em pose de puta à espera de engate com dois dentinhos e sorriso de merda; o meu retrato.


 


- Ri-se de quê este palhaço?


 


Ri-se de quê este palhaço, eu, um perfeito idiota, perdido nas cânforas manhãs adormecidas da cidade, deambulando pelas ruas com um cordel na mão que suspende um papagaio de papel e com um sorriso espanta as gaivotas junto ao mar, eu, um perfeito idiota, eu sentado junto à estátua da Maria da Fonte, e hoje, hoje não sei o que é, ri-se de quê este palhaço,


 


- Eu, um perfeito idiota de crucifixo ao peito, pulseirinha nos braços e um anel, e hoje não crucifixo, e hoje não pulseiras, e hoje não anel, e hoje não sorriso, hoje à espera da chegada da maré e me leve para o infinito ao encontro de duas rectas paralelas, carris em perfeito estado de desolação, cansados, carruagens em desassossego que esperam transeuntes complicados, fodidos como eu com a vida,


 


E a vida ri-se de quê este palhaço, desempregado, fodido, humilhado, crucificado na freguesia do Carmo numa manhã de nevoeiro, as galinhas na capoeira, e as pombas deitadas no cansaço das galinhas, e ela, e ela encostada às mangueiras que faziam sombra sobre o meu quintal, não chove, ri-se de quê este palhaço deitado no capim e com medo do regresso, e porquê, e porquê me trouxeram, eu morto, eu enterrado, eu à espera do paquete, e como eu teria desejado que se afundasse na passagem do equador,


 


- Eu, um perfeito idiota de crucifixo ao peito, pulseirinha nos braços e um anel, empoleirado nas grades do navio, e ao longe, ao longe o meu triciclo que ficou lá, ao longe um papagaio de papel em brincadeiras na chuva,


 


Ri-se de quê este palhaço?


 


E a chuva a fugir-me, e a chuva a esconder-se na minha mão, e a minha mão encostada à mesinha, e pergunto, e pergunto-me,


 


- Ri-se de quê este palhaço?


 


O meu retrato.


 


 


 


(texto de ficção)


Luís Fontinha


5 de Maio de 2011


Alijó

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