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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


10.10.22

Quando acordavam, o crucifixo suspenso na parede, que tinha como única finalidade, esconder as fendas que abundavam no gesso em ruínas, lacrimejava todas as palavras ouvidas durante a noite.

Esta noite devíamos ter conversado muito, ele não pára de lançar palavras contra os tristes lençóis e cobertores que sobre nós poisaram, lamentava-se ela enquanto ele escondia o olhar no cortinado, velho, que mais parecia um campo de milho quando maduro,

E claro, vinha-me à memória os campos de milho de Carvalhais, da amarela, do velhinho que contava estórias mirabolantes sobre a primeira grande guerra, dos uivos do carro de bois e das manias que eu tinha de andar sempre só; como as cabras em pleno monte.

Descia a noite e quando o Branco ligava o moinho ecléctico, modernices, pois tinham um movido a água, enquanto o cereal dançava, a lâmpada do meu quarto, o quarto do meio, começava a cambalear, até que momentos depois, desmaiava por completo e só depois do tio Branco desligar o dito é que voltava a ter luz para ler os poemas do Pessoa; e quando a noite já levantava voo sobre o sino de Carvalhais é que eu começava a escrever a um remetente inventado, pois quase nunca tive ninguém a quem escrever, a não ser, no serviço militar, a cravar dinheiro à minha mãe. Um dia perguntou-me quantas vezes eu era assaltado por semana, pois a razão de eu pedir dinheiro era sempre a mesma. Mãe, fui assaltado.

Conversamos muito, disse eu. Pois também estava de acordo com ela, à quantidade de palavras que o crucifixo lacrimejava dava para perceber que tinham sido muitas. Ergui-me, procurei um cigarro sobre a mesinha-de-cabeceira, e comecei a vomitar sinais de fumo à janela com fotografia para o mar. Do segundo andar via uma réstia de mar, a sombra de um barco e o uivo de uma gaivota, nada mais, em Carvalhais, já noite dentro, ele escrevia em pequenos papeis que ainda hoje continuam acorrentados aos quatro cantos de cartão, onde poisam, e quase nunca saem para passear no jardim ou descer a calçada com acesso ao rio.

Quando ele olha em direcção ao leito dos lençóis e cobertores poeirentos, ela já dormia novamente, e ele, suspenso entre dois segundos, olhava-a, olhava o crucifixo que não parava de lacrimejar as ditas palavras nocturnas do desejo e a velha espingarda que apenas disparava às terças e quintas, durante a tarde; não ligou e esperou que o cigarro terminasse o seu prazer, isto é, foder um gajo que acaba de acordar. E diga-se, sou fodido por estes gajos há mais de trinta anos.

A noite estava calma. As palavras fluíam nas rasuradas folhas que encontrei numa qualquer gaveta do avô Domingos, naquela noite não me apetecia escrever no caderno, e os sons da noite entravam-me quarto adentro; ouviam-se as lágrimas das sombras que eu sabia que habitavam no campo de milho semeado junto à janela. Deixei de ouvir o avô velhote, um dia finou-se.

Peguei na espingarda, e percebi que ela jamais poderia acordar, depois soube que tinha ido para outro aposento, mais limpo, onde não havia crucifixos a tapar frestas e dos papeis escritos por mim, apenas algumas cinzas restavam junto ao cinzeiro em granito que um grande amigo me tinha oferecido. Nunca mais fui assaltado.

O tio Serafim animava a adega. Artista conceituado por aquelas bandas, brindava-nos com o vinho morangueiro, confesso que nunca o bebi, porque detesto vinho, mas fazia-me acompanhar por umas Cucas, o famoso presunto, a linguiça, e claro, o melhor pão de milho que comi até hoje; o pão de milho da tia clementina.

O Serafim além de cantar o fado, ser barbeiro nas horas vagas, cuidar das terras e do gado na companhia da tia Clementina, ainda na juventude, tinha feito crer a muita gente que tinha regressado do Brasil, sem que nunca tenha saído do Bairro Alto em Lisboa. Um verdadeiro artista. Um homem galante, de fato, bengala e nunca deixava de se acompanhar pelo famoso palhinhas e do respectivo sotaque.

E Carvalhais, aos poucos, começou a ficar sem graça. Uns foram para ali, outros foram para acolá, ela começou a ler umas coisas de AL Berto, e basicamente, todos eles mortos, desaparecidos do combate da vida.

Às vezes, durante a noite, oiço o velho moinho do tio Serafim, vou à janela e chegam a mim as silenciadas sombras que brincam no campo de milho, mesmo por baixo dos meus pés. Quanto à espingarda, também ela, morreu numa manhã de neblina…

Que assim seja.

 

 

 

Alijó, 10/10/2022

Francisco Luís Fontinha


23.08.14

Procurava nas penteadas espigas de milho,


o sabor amargo de amar,


deitava-me sobre o chão frio do granito ensanguentado da eira,


pincelava o luar de madrugada,


e procurava...


adormecia sem o perceber,


porquê?


e se era aquele o momento de o fazer!


o sino ouvia-se ao longe,


o horário deixou de fazer sentido,


tal como o calendário,


procurava... e nunca as encontrava...


 


As chaves do espigueiro telintavam numa algibeira furada,


que servia de esconderijo a um corpo emagrecido,


cansado,


e ferido...


 


Havia lágrimas nos olhos das frestas do espigueiro,


a madeira envelhecida... rangia... parecia um homem desiludido com a vida,


acordavam-me para o jantar,


e fazia de conta que não ouvia...


nem sentia...


o vento soprar,


e eu procurava... e ele em pequenos círculos... me abraçava,


acreditava que das pálpebras dos pinheiros fugiam as estrelas em papel,


acreditava que à resina regressavam as plumas fluorescentes das meninas de cartão...


e nunca vi o mar acorrentado ao granito ensanguentado da eira,


nem os barcos, nem os marinheiros com odor a sexo,


e no entanto... havia uma mulata que dançava na eira só para mim,


 


O zinco da sanzala gritava,


e um menino em calções chorava grãos de pólen,


não havia abelhas para me consolarem...


nem... nem mangueiras sombreadas nas mãos dos mabecos enfurecidos com o meu sorriso,


 


Bufunfa...


o kimbundu poético da paixão dos pássaros,


o voo silencioso dos dentes de marfim sobre a mesa da sala de jantar,


uma ténue luz que iluminava o capim que jazia nas bermas da estrada,


caminhava, caminhava... e não tocava no granito ensanguentado da eira,


brincava com os papagaios de papel inventados nos seios de um coqueiro,


cintilavam em mim as gazelas, os elefantes... e ao meu lados os entristecidos marinheiros...


e procurava...


adormecia sem o perceber,


porquê?


e se era aquele o momento de o fazer!


Levantar-me do chão frio do granito ensanguentado da eira.


 


 


 


Francisco Luís Fontinha – Alijó


Sábado, 23 de Agosto de 2014


19.07.11

A pérola embriagada das manhãs cânforas do meu olhar,


O rosnar do cavalo a diesel de boca aberta a engolir o milho da manhã, a madrugada despede-se e aos poucos a claridade abraça-se aos pinheiros, nas fendas do granito do muro de vedação da leira um coelho esconde-se, e ao lado do tanque uma perdiz em movimentos femininos, de sapatos altos e minissaia, nos lábios poisa o batom em fogo do sol que se esconde nas ripas do canastro, e nos cabelos prende uma rosa branca, a perdiz saltita, a mulher emagrece nas sombras das ramadas, as videiras coçam-se ao arame e encostam-se aos esteios de cimento, na mulher cresce um sorriso de bom dia e a perdiz mingua junto à água que caminha rego fora, tropeça numa pedra, desvia-se, e cai sobre a leira seguinte, mistura-se nas fezes da passarada e demais habitantes da aldeia, e em forma de cotovelo acaba por se perder na poça, a mulher olha-se no espelho que em tentativas demoradas pesca da carteira de couro fingido, e dos olhos as barbas de milho realçando-lhe a cor infinita do olhar, toca nos lábios argamassados de vermelho com a língua, dobra a língua à maneira de trapezista de circo, entra dentro da boca, toca num dente em convalescença, o corpo fino e esguio nos desperdícios das coxas, ouve-se um Ai e certamente a perdiz, a perdiz com as patas enterradas no rego, agonia e afoga-se, e a água dissolve-a nas alavancas das pernas da mulher, a mulher geme, ensaia alguns passos e os saltos esguios de eucalipto sepultam-se na terra encharcada de suor,


O motor do cavalo cessa repentinamente e sobre a cabeça as nuvens preguiçosas das horas que se aproximam da leira, o velho desce do cavalo, e em voltas completas e de mãos na cabeça acredita que alguma coisa grave aconteceu, e pensa com o auxilio da boina às riscas que quando se embebeda esconde no bolso das calças calcinadas pelas geadas do inverno, Será cansaço?, o velho começa a comer os cigarros sem filtro e novamente a tentar perceber o amuo do cavalo a diesel, Será os filtros semeados de poeira?, não,  não pode ser Ainda ontem os limpei com o compressor!, mas que raio suplicava ele deitado na poeira, a mulher ao longe grita-lhe E não será fome?, Fome, repete ele!, sim fome, mas que porra se ainda antes de vir lhe dei de comer…, o feno verde que a bomba manual da boca puxou do tambor de duzentos litros e os vómitos e o enjoo e a final e derradeira cuspidela para o chão do diesel amargo do feno.


(continua)

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