27.12.22
Caíam sobre nós as navalhas de vidro
Que da noite traziam todos os silêncios visíveis e invisíveis,
Naquele tempo
Acreditava ser um pequeno espantalho
Algures esquecido num qualquer campo de milho
À espera de que regressassem as amuradas da insónia,
Nunca regressaram e nunca me importei por tal:
Às vezes a noite escondia-se dentro de um pequeno cubo de vidro
Como sempre se esconderam as nuvens
E a chuva e a geada,
As abelhas picavam os braços emagrecidos dos espantalhos
(que só a mãe consegue perceber)
E mesmo assim
Habitava numa redoma de vícios
E muitas vezes empenhei o meu esqueleto…
Que ainda hoje
São duzentos e seis ossos de dor.
E erguiam-se sobre nós
As tempestades cinzentas das marés
Quando descia sobre o corpo a ressaca
E voávamos sobre uma planície pincelada de negro horror.
Hoje não me escondo
E tão pouco sou um espantalho…
Alijó, 27/12/2022
Francisco Luís Fontinha