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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


23.07.23

Nunca soubeste o que era chorar

E choraste de dor

Na dor.

Desenhaste gritos no meu olhar

Enterraste nos meus lábios

O cansaço de estar vivo

Nunca soubeste o que era chorar

E choraste de dor

E tiveste medo

Quando nunca tinhas tido medo.

 

Nunca soubeste o que era chorar

E choraste de dor

Na dor.

 

Nunca soubeste o que era chorar

E choraste de medo

Quando o teu medo

Era apenas um silêncio

E o meu silêncio

O teu medo

De também eu ter dor.

 

Nunca soubeste o que era chorar

E choraste de dor

Na dor.

Nunca soubeste o que era ter medo

E choraste com dor

O meu medo

Juntamente com o teu medo.

Nunca soubeste o que era chorar

Tão pouco a que horas acordavam dentro de mim…

Todas as personagens da minha vida…

E choraste

E tiveste dor…

Na partida.

 

 

 

23/07/2023

Luís


21.07.23

Por esta altura, conversávamos,

Tu,

Embrulhado na morfina,

Eu,

Eu embrulhado na tristeza.

Tu mentias-me,

E eu,

E eu mentia-te.

Tirando isso,

Conversávamos,

Tu dizias-me que já não podias ouvir os pássaros,

Eu levantava-me,

Às vezes,

Às vezes tropeçava num círculo de cansaço, e mandava calar os pássaros,

Ficavas tão feliz, quando deixavas de ouvir os pássaros!

 

Sentava-me, irritava-me, irritava-me ouvir os teus gemidos,

Levanta-me,

Vinha à rua,

Fumava um charro,

Pensava…

Em que pensava eu…

Voltava a entrar, sendo eu ateu, rezava…

Rezava para quando entrasse no quarto onde estavas…

Eu,

Eu não chorasse,

 

E Deus cumpriu.

(Deus é fixe).

 

Por esta altura, conversávamos…

De que conservávamos nós afinal…

Coisas simples,

Falavas do vento,

Dizias-me que para a semana já estarias em casa,

E eu,

Que sim, pois claro,

Sabendo tu que era mentira,

Sabendo eu,

Que não era a verdade;

Mesmo assim, não mentiste.

Menos de uma semana estavas em casa…

 

Oito anos, e conversávamos.

De que conversávamos, pai…

Começo a ficar esquecido,

Quase não me lembro das nossas conversas,

Conversávamos,

Tu embrulhado na morfina,

Eu enganando a tristeza com um charro e dois ou três maços de cigarros…

E lia-te poesia,

Lia-te AL Berto,

E acho que gostavas,

Tu sorris,

Eu sorria,

 

E às vezes,

E às vezes desenhava uma lágrima invisível…

Que apenas eu sabia as suas coordenadas para mais tarde a localizar…

 

Depois,

Depois conversávamos,

De quê, pai,

De que conversávamos nós…

Do tempo,

De nós,

Sei lá, pai,

Conversávamos,

Para te alegrar, sabendo que gostavas de pássaros,

Vestia-me de pássaro,

Desenhava danças esquisitas em teu redor,

Dava-te um beijo…

E escondia-me na sombra das mangueiras.

 

Conversávamos, de quê…

E o quê.

Oito anos, por esta altura, conversávamos.

Eu escrevia-te cartas,

Fingia que estava em Lisboa,

Tu com a pedra que estavas…

Acreditavas,

E sorrias,

Como uma criança sentada num baloiço.

 

E conversávamos, pai, de quê,

O quê.

Conversávamos,

Às vezes,

Às vezes desmaiava,

Mais tarde,

Acordava num outro quarto, numa outra pensão…

E dou conta que não era o teu corpo,

Naquela cama,

Mas sim…

O corpo de uma mulher,

Ela, sela sorria-me,

E tu,

Ausente num outro corpo,

Sorrias, também.

Depois gritava por ajuda,

E percebia que afinal…

Todo o teu silêncio…

Devia-se ao descanso, enquanto a morfina escrevia no teu rosto

O último poema da tarde,

Eu sorria-te,

E tu,

Em silêncio; sonhavas.

 

Acordava a noite em ti,

Dentro de mim, perdi a conta às noites,

Aos dias…

Tanto faz, como diz o AL Berto,

(as calças que me deram hão-de ajustar-se ao meu corpo)

Pura verdade, pai,

E de quê,

Conversávamos nós,

Enquanto eu e tu olhávamos o Mussulo,

Pegavas na minha mão…

E voávamos…

E voávamos, pai.

 

Por esta altura, conversávamos,

Tu,

Embrulhado na morfina,

Eu,

Eu embrulhado na tristeza.

Tu mentias-me,

E eu,

E eu mentia-te.

Tirando isso,

Conversávamos,

 

Num dos poucos momentos da tua lucidez,

Confessei-te que estava a ler o último livro do Lobo Antunes,

Olhaste-me,

Sorriste-me,

E disseste-me que em breve ficaria maluco,

Depois,

Fechaste os olhos,

Gesticulavas qualquer coisas com as mãos…

E voavas,

Voavas,

Depois,

Depois aterravas num aeródromo qualquer,

Sem vigia,

Próximo do mar;

Pegavas-me na mão…

E confessavas-me que dentro do mar…

Que dentro do mar moram os sonhos.

 

E conversávamos,

De quê,

E o quê,

Talvez…

O pequeno silêncio…

Disfarçado de gente,

Tanta,

Que mente,

Eu mentia-te,

Tu,

Tu mentias-me.

(e éramos tão felizes, dentro daquele quarto)

 

 

 

21/07/2023

Francisco Luís Fontinha


01.07.23

Habito,

Habito dentro deste cadáver emprestado,

Fingindo que este cadáver emprestado,

Me pertence,

Não,

Este cadáver emprestado,

Nunca,

Nunca me pertencerá,

 

Habito neste planeta de enganos,

De estrelas mortas

E de mortas

Palavras,

Não,

Este cadáver não me pertence…

E terei de o devolver…

E terei de desenhar na minha mão

Um outro cadáver

Com um outro nome,

 

Habito,

Habito dentro deste pequeno círculo,

Que me rouba o sono,

Que não me dá fome…

Habito,

Habito dentro deste livro que escrevo em segredo,

Sem palavras,

Sem medo…

Apenas desenhando silêncios…

E rochedos,

 

Habito,

Habito dentro deste cadáver,

Que não me pertence,

Que nunca me pertenceu…

E sofro,

Muito…

Porque preciso de o devolver…

E não sei a quem pertence.

 

 

 

01/07/2023

Francisco


06.04.23

Cresci

Acreditando num Deus

Pedia-lhe coisas

Muitas coisas

Era um círculo de luz com olhos verdes

Às vezes

Este meu Deus misturava-se com as crianças que brincavam nos musseques

Construía danças enquanto o vento

Desenhava sorrisos junto ao capim

 

Este círculo de luz com olhos verdes

O meu Deus

O Deus todo-poderoso

Criador das palavras

Do desejo

Do sexo das palavras

Do beijo

Este pequeno-grande círculo de luz

Com verdes

Verdes olhos das marés de Inverno

 

Cresci

Rezava-lhe

Ajoelhava-me junto ao mar

Erguia-lhe as mãos…

E ficava… ali… pasmado como um pedacinho de medo

Sempre à espera

Esperando

Que um paquete me resgatasse daquele Inferno

 

E depois de eu morrer

O comandante do paquete

E o Deus todo-poderoso

Criador do silêncio

Da poesia

Da paixão

Um círculo de luz

Com olhos

Verdes

Meu amor…

Verdes olhos

 

À noite

Sentava-me na cama

Desenhava paquetes na fronha da almofada

Uma espécie de miséria abraçada à vergonha

Quando as estrelas em finos traços de tesão

Subiam às mangueiras do meu quintal

E eu sabia

Quase sempre…

Que o avô Domingos regressava da cidade

E na mão

Trazia o cordel

Com que puxava os machimbombos

Por uma Luanda…

Em pequenos vómitos

 

Meu Deus

Meu grande Deus

Círculo de luz com olhos verdes

De verdes olhos

Entre momentos de dor

E caixas de solidão

Um Deus hoje

Hoje arrogante

Um Deus que se está a cagar para mim

E para as minhas palavras

Um Deus…

Um círculo

De luz

E de verdes olhos

 

E não me digam que este Deus

Meu Deus…

E não me digam que este circulo de luz com olhos verdes…

É Deus…

Porque este círculo de luz com olhos verdes

Este meu Deus…

É apenas mais um impostor que poisou dentro de mim

Como todas as pedras

Como todos os rios

Como todos os mares;

Um círculo de luz com olhos verdes.

 

 

 

Francisco

06/04/2023


27.12.22

Caíam sobre nós as navalhas de vidro

Que da noite traziam todos os silêncios visíveis e invisíveis,

 

Naquele tempo

Acreditava ser um pequeno espantalho

Algures esquecido num qualquer campo de milho

À espera de que regressassem as amuradas da insónia,

 

Nunca regressaram e nunca me importei por tal:

Às vezes a noite escondia-se dentro de um pequeno cubo de vidro

Como sempre se esconderam as nuvens

E a chuva e a geada,

 

As abelhas picavam os braços emagrecidos dos espantalhos

(que só a mãe consegue perceber)

E mesmo assim

Habitava numa redoma de vícios

E muitas vezes empenhei o meu esqueleto…

Que ainda hoje

São duzentos e seis ossos de dor.

 

E erguiam-se sobre nós

As tempestades cinzentas das marés

Quando descia sobre o corpo a ressaca

E voávamos sobre uma planície pincelada de negro horror.

 

Hoje não me escondo

E tão pouco sou um espantalho…

 

 

 

 

Alijó, 27/12/2022

Francisco Luís Fontinha

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