20.12.22
(ao meu avô Domingos)
Deixaste fugir
Os espantalhos dos campos de milho de Carvalhais
Fumaste todos os cigarros
Dos espantalhos dos campos de milho de Carvalhais
Ias à janela
Beijavas a lua
E voavas até ao apeadeiro mais próximo.
Cresceste
Fizeste-te louco
Caminhaste pelas calçadas e ruelas
De uma cidade morta
Com cheiro a incenso
E a sexo
E a merda.
Pensavas que os campos de milho de Carvalhais
Eram o mar disfarçado de pedra-pomes
Mas os campos de milho de Carvalhais
Eram canções de vento
Palavras enamoradas
Pensavas que os campos de milho de Carvalhais
Pertenciam às esplanadas
Onde fumavas cigarros de prata
Acepipes
E pequenas larvas.
Mas daquela janela
De onde conseguias observar a torre da Igreja
E todos os cacilheiros com destino a Santa Cruz da Trapa
Havia uma ponte invisível
Com odor a naftalina
E lábios de saudade.
Cansavas-te dos campos de milho de Carvalhais
Galgavas as sombras
E as ribeiras de pólen
Dos campos de milho de Carvalhais
E à janela
Iluminada pelo silêncio da noite
Lá estava ele o coitado do espantalho
Com mãos de vidro
E pernas de vergonha…
Não tenhas medo
Meu querido irmão
Das infinitas palavras que habitam o dicionário
Não tenhas medo
Meu grande irmão
Do sono
Da paixão
E da morte,
Tudo faz parte
Tudo é vida
(Tudo é fado)
E umas vezes é sorte.
Escrevia cartas ao sono
O garoto mimado
Como se o sono fosse um gajo porreiro
Mas o sono
Que tal como os campos de Carvalhais
É um grande filho da puta
Embriaga-se durante a noite
E durante o dia
Vai à janela de Carvalhais
Puxa de um cigarro
E em silêncio
Apanha o primeiro cacilheiro com direcção a Santa Cruz da Trapa…
Os livros comiam-me
(e se ainda fossem gajas!)
Agora livros…
Quem quer um gajo com livros
Com discos
Com isto e aqueloutro
Sem tudo
Com nada
Ausente
Astronauta
Cançonetista
E nas horas vagas
Trapezista de circo ambulante
E stripper.
Íamos à Cárcoda
Sentávamo-nos sobre as pedras
Conversávamos de gajas
E até me queria impingir uma gordinha
Com sotaque de futura empresária…
Não gostei da ideia
(não por a moçoila ser gordinha, mas não nasci para ser capitalista)
E vender artesanato
Pior ainda…
Não nasci para nada.
Pelas seis horas da madrugada
A janela
Aos poucos
Fechava-se como se tratasse de um caracol
E escondia-se dentro do quarto,
E da algibeira
Sem perceber porque tinha lá pedaços de néon
E um cachecol das estrelas em papel
Acordavam as espigas de milho dos campos de Carvalhais,
E o silêncio era tal…
Que ouvíamos a respiração ofegante da tristeza.
Alijó, 20/12/2022
Francisco Luís Fontinha