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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


19.07.23

Somos o quê, pai,

Morremos de quê, pai,

Somos o que nos vestem,

E do pouco que sobra, o quê, pai,

Quando um machimbombo de esperança brincava no teu olhar,

E de quê,

Somos o quê, pai,

Somos a Lentidão de Kundera?

Ou a piquena dos chocolates…

Do poema A Tabacaria do senhor Álvaro de Campos,

E de quê, pai,

Os chocolates.

 

No entanto,

Eu,

Tu,

Ele,

Ela,

Nós…

Todos mentíamos,

Tu mentias-me,

Eu mentia-te,

Ela desconfiava,

Menos uma mentira,

 

E o quê, pai,

O que somos, pai,

Somos o pão,

Somos o poema,

Somos a poesia,

E, no entanto,

Eu mentia-te…

E tu tinhas a perfeita consciência que estavas a ser aldrabado,

O teu filho, malabarista, artista e poeta…

Inventava estórias no teu sorriso,

Falso sorriso,

E depois,

E de quê, pai,

E esqueci-me do perfume das tuas acácias…

 

Somos o quê, pai,

Somos átomos que pensam,

Átomos que amam,

Que morrem…

E nascem,

E de quê, pai, o que somos, pai,

Depois, durante a noite, desenhava o teu cabelo, com o meu olhar…

E era lindo…!

Eu ficava esquecido numa cadeira fantasma,

Mais cansado do que tu, pois tu estavas com uma grande pedrada de morfina, e feliz,

Tu falavas-me de pássaros,

Eu, inventava pássaros,

Perguntavas-me se era dia,

Noite…

Depois arrependias-te…

Deixa lá, tanto faz… não tenho pressa,

 

Nem eu, o quê, tinha pressa,

De quê, pai, o quê…

Que somos.

 

 

19/07/2023


03.06.23

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Deste silêncio pouco

Deste pouco nada

Ainda me sobram algumas palavras

Umas boas

Outras

Outras muito parvas

E muitos nadas.

 

Dos nadas

Todas as minhas palavras

E hoje a noite

A noite

Não a minha noite

Mas hoje a noite está triste

Já me atirou com lágrimas…

Com sorrisos de fúria…

Nem uma estrela para olhar

Ou

Outras…

Pedir um desejo.

 

E o que posso eu desejar

Que já não tenha desejado

Escrito

E desenhado

No entanto

Desejo

Muito

Não morrer de cancro.

 

 

 

Francisco

03/06/2023


27.03.23

Algures, 27 de Março de 2023,

Meu querido,

 

Provavelmente, quando leres estas minhas palavras, já não estarei entre os vivos e, todo o meu sofrimento terá terminado.

A Francisca, desculpa, meu querido, desculpa… pois, não sabes quem é a Francisca.

A Francisca, a minha filha, já está no terceiro ano de engenharia computacional (não sei a quem ela sai)… vê lá, como o tempo passa, como o tempo voa. Como o tempo voa… meu grande amor.

Sei que brevemente irei partir, sem que te tenha contado toda a verdade, também não sei a razão de te ter ocultado (sim, meu querido, tu, tu és o pai biológico da Francisca), e só agora, que vejo o final do túnel e a luz… é que ganhei coragem de lhe contar; ficou furiosa comigo e julgo que me vai odiar eternamente; tal como tu, talvez… me irás odiar eternamente, mesmo sabendo que tu, meu grande amor, és incapaz de odiar o que quer que seja. Preferes sofrer de que odiar.

E sabes, meu querido, o meu maior receio é que ela nunca venha a procurar-te, gostar ou amar-te; tão teimosa que ela é, mas tal como tu, que és incapaz de dizer a alguém que a amas ou gostas, também ela, também ela é assim…

Peço-te perdão, por tudo.

Recordo os livros que líamos em conjunto, recordo as palavras que me escrevias, e sim, meu querido, as tuas palavras faziam-me sentir tão especial, tão segura… tão… tão amada como nunca o fui. A minha vida foi um erro, um erro que paguei muito caro e que talvez esta maldita doença seja o castigo de Deus por todo o mal que te fiz.

A nossa filha está impossível. Quase não quer falar comigo, não sei se é devido ao meu estado ou ao ter que encarar a verdade; que tu és o pai dela.

Lamento, mas a Francisca nem o teu nome quer ouvir…

Mas peço-te, meu querido, peço-te que tentes conversar com ela, e aviso-te já que não será fácil, pois além de teimosa, ela é também muito orgulhosa; a quem é que ela sairá!

Se eu tivesse forças, juro-te pelo todo o amor que sempre tive para contigo… juro-te que me suicidava, mas já nem forças tenho, neste momento sou um vegetal à espera de voar… voar em direcção ao mar, ao mar que tu tanto amas.

Perdoa-me meu querido, perdoa-me por tudo.

 

Desta que nunca te esqueceu,

 

 

Até um dia, meu querido.

 

(ficção)


20.11.22

Se me procuras,

Não estou; a verdade é que nunca estive

Onde estou e pensam que estive.

Não tenho número de polícia,

Destinatários para enviar cartas,

Os meus amigos,

Os verdadeiros amigos, morreram. Quase todos por cancro.

Uma merda, o cancro.

 

Escrevo poemas aos caracóis,

Às abelhas e aos pássaros,

Às árvores e às putas das árvores

Onde poisam os cornudos dos pássaros.

 

E os caracóis ouvem-me,

São afáveis, sinceros e honestos,

São como eu; quando a conversa não me interessa,

Escondo-me em casa,

Dentro desta carapaça que transporto desde que nasci.

 

Já as abelhas,

Bom, com essas não me dou muito bem,

Sou alérgico às abelhas,

Sou alérgico à mãe das abelhas,

Que pensam que os filhos,

Tal como os pássaros,

São cornudos diplomados,

Mas só os caracóis é que me escutam,

 

Os únicos a quem escrevo cartas.

 

Vou ao cemitério, e quase todos os gajos e gajas que lá habitam,

Levou-os o cancro; os meus amigos.

E vou continuando a escrever cartas aos amigos que me restam…

Os caracóis,

 

E de caracol em caracol,

De flor em flor,

Palavra puxa palavra,

Penso na merda do Natal que se aproxima;

Por mim, proibia o Natal e merdas afins…

E devia haver censura para quem festeja o Natal e prisão domiciliária,

 

E lá terei de entrar no cemitério,

E de campa em campa,

Feliz Natal companheiro,

Bom ano, minha querida,

Brevemente estaremos todos à volta da fogueira,

(mas qual fogueira, caralho)

Se nem fogueira vai haver,

 

Que esta terra foi excomungada, ai isso foi.

Tinha um amigo, amigo de verdade,

Quando se aproximava o Natal,

Oferecia-me erva e erva e erva para fumar…

E fumávamos erva enquanto o tempo se escoava nos anéis de Saturno,

E o gajo falava e o gajo falava e o gajo não se calava,

 

Mas calou-se; e morreu.

 

O meu pai, no Natal, dava-me livros,

Livros, livros e muitos livros,

A minha mãe, livros,

Fui um felizardo, o felizardo dos livros.

 

E sabes, meu amigo caracol,

Sabes?

Que se foda o Natal…

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco Luís Fontinha


18.08.22

Lamento muito, mas o senhor tem cancro.

- Não lamente, doutor, porque eu só quero voar!

Voar?

- Sim, doutor, voar em direcção ao mar…

 

Desciam as nuvens sobre a aldeia quando uma pincelada de luz poisou sobre o silêncio e na despedida, no final da tarde, ouviam-se os primeiros gemidos dos gonzos enferrujados da insónia, depois, percebemos que tínhamos acordado dentro de um cubículo desabitado e que antes de nós, pelas frestas que nos olhavam através das tristes paredes, tinha pertencido ao poeta suicidado.

- Morreu de quê, doutor?

Enforcou-se nas palavras…

E das palavras se alimentou durante mais de quarenta anos, até que numa alegre tarde de Inverno, junto à lareira, percebeu que essas mesmas palavras eram o veneno invisível que todas as manhãs acordava a seu lado,

- Mas… doutor, eu apenas quero voar… sim, voar em direcção ao mar…

E percebeu que além das palavras, e percebeu que além dos livros, e percebeu que além da doença, tudo em comparação com a possibilidade de voar, em direcção ao mar, eram apenas pequenas sombras que todas as noites dormiam sobre o cacimbo da infância.

E um dia, dos calções, acordou a luz.

- Que descanse em paz,

Como se a morte não fosse o eterno descanso de duzentos e seis ossos e trinta e dois dentes. Mas ele, teimoso, apenas queria voar em direcção ao mar, e que desciam as nuvens sobre a aldeia quando uma pincelada de luz poisava sobre o silêncio, até que uma pequena lâmina de saudade se abraçava a ele, como se a morte não fosse o eterno descanso da puta da pesadíssima enxada da vida,

- Barcos ao fundo.

Silêncios ao alto.

E entre apitos doirados, socalcos e vinhedos, o velho comboio quase a merecer a tão desejada reforma, dançava ao som do pôr-do-sol como se fosse um menino a brincar nos pequenos charcos após as chuvas endiabradas das manhãs de intenso calor. E ele, ainda sentado sobre uma pausa de cansaço, perguntava-me,

- Falta muito, doutor?

E claro que não, claro que não… estamos quase.

- Não lamente, doutor, porque eu só quero voar!

Voar?

- Sim, doutor. Voar como voam os sonhos nas mãos desejadas do sono.

E que do sono se faça a luz; segredava-me ele enquanto vestia as asas silenciadas pelas tempestades de areia numa qualquer longínqua praia em que apenas os pássaros podiam dormir antes de acordar o luar.

- Sim, doutor, voar em direcção ao mar…

 

 

 

Alijó, 18/08/2022

Francisco Luís Fontinha

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