19.07.23
Somos o quê, pai,
Morremos de quê, pai,
Somos o que nos vestem,
E do pouco que sobra, o quê, pai,
Quando um machimbombo de esperança brincava no teu olhar,
E de quê,
Somos o quê, pai,
Somos a Lentidão de Kundera?
Ou a piquena dos chocolates…
Do poema A Tabacaria do senhor Álvaro de Campos,
E de quê, pai,
Os chocolates.
No entanto,
Eu,
Tu,
Ele,
Ela,
Nós…
Todos mentíamos,
Tu mentias-me,
Eu mentia-te,
Ela desconfiava,
Menos uma mentira,
E o quê, pai,
O que somos, pai,
Somos o pão,
Somos o poema,
Somos a poesia,
E, no entanto,
Eu mentia-te…
E tu tinhas a perfeita consciência que estavas a ser aldrabado,
O teu filho, malabarista, artista e poeta…
Inventava estórias no teu sorriso,
Falso sorriso,
E depois,
E de quê, pai,
E esqueci-me do perfume das tuas acácias…
Somos o quê, pai,
Somos átomos que pensam,
Átomos que amam,
Que morrem…
E nascem,
E de quê, pai, o que somos, pai,
Depois, durante a noite, desenhava o teu cabelo, com o meu olhar…
E era lindo…!
Eu ficava esquecido numa cadeira fantasma,
Mais cansado do que tu, pois tu estavas com uma grande pedrada de morfina, e feliz,
Tu falavas-me de pássaros,
Eu, inventava pássaros,
Perguntavas-me se era dia,
Noite…
Depois arrependias-te…
Deixa lá, tanto faz… não tenho pressa,
Nem eu, o quê, tinha pressa,
De quê, pai, o quê…
Que somos.
19/07/2023