Dormíamos na copa das árvores.
Regressava a noite,
O Alfredo, sonolento, encostava-se ao interruptor do silêncio…
E segundos depois, acordavam todas as estrelas.
Meia-dúzia de putas…
Desciam a rua e encostavam-se a Cais do Sodré,
Regressava o vento lá dos lados do Tejo,
Depois, descíamos da copa das árvores,
Desenhávamos um abraço na doce manhã…
Fumávamos um cigarro,
E nada,
E nada vezes nada,
O zero medo quando os planetas machos procuram os planetas fêmeas,
Da varanda, a linda serpente embrulhada nos braços do Alfredo,
E tínhamos medo, e sempre que olhávamos o Tejo,
Um petroleiro com fome poisava em nós…
E acabava sempre, mas sempre, nas algibeiras da insónia.
Dias depois, o Alfredo…
PUM.
Dizem que por desgostos de amor,
Pegou no revolver…
E zás,
Um tiro nos cornos e dizem,
Dizem que ganhou um par de asas,
Asas,
Ou talvez cornos,
Já nem sei…
Passou tanto tempo, meu amor,
Tanto tempo escondido dentro daquele pedaço de silêncio,
E há tanto tempo que o Alfredo deu o tiro nos cornos…
Pedia-lhe perdão,
E ela,
Nada,
Zero vezes zero…
O zero primeiro milagre dos tristes embondeiros,
Ouvíamos os mabecos esfomeados em busca de sexo,
Num dos bolsos da gabardine,
O isqueiro,
E no outro…
A pedra e o livro das mortalhas,
E sabíamos, e sabíamos que brevemente,
Estávamos nos braços de um do outro,
Erguia-se da cadeira, olhava cada livro estacionado na biblioteca…
Depois, depois segredava-me…
Não gosto de ti.
Que se foda, pensava eu, e pensava bem,
E pensam bem todos aqueles que pensam.
Porque pensam.
Porque estão bem,
E quando tudo está bem…
Não se muda uma palavra ao poema.
Eu lia-lhe AL Berto no sorriso de um pedacinho de sémen,
E ela gostava tanto dos poemas de AL Berto…
Que eu, rapaz nada ciumento,
Sentia os meus primeiros capítulos de ciúme;
Os poemas de AL Berto.
Regressava a noite nos lábios da coruja,
Ele nunca soube o significado de ser amado…
Ele nunca soube o significado de ser desejado…
E, no entanto, ele amava todos os barcos do oceano,
E, no entanto, ele morreu, sem que todos os barcos do Oceano soubessem.
Despia-a na lentidão de Milan Kundera,
Acariciava-lhe os lábios entre os pequenos destinos de luar,
Começava a escrever no seu corpo todas as palavras que tinha recolhido durante a noite…
Mas como sempre, ela, horas depois, evaporava-se e depois de entrar na neblina sobre o Tejo…
Coitado do Alfredo,
Coitado,
Um tiro nos cornos…
E um par de asas em camurça.
Eu desenhava nas frestas da parede em gesso, junto a um crucifixo,
Todos os seus gemidos,
Todos os seus beijos,
Desenhava nas frestas da parede em gesso,
A paixão e o amor,
E enquanto fodíamos,
Cada um de nós pertencia ao sorriso da lua,
Ela dizia que queria ser bióloga,
Eu…
Quanto a mim,
Nada.
Quero lá eu ser isto e aquilo ou aqueloutro…
Para que quero eu um carro com tantos cavalos?
Nem tenho terreno onde os deixar durante a noite a pastar…
O relógio tinha-se esquecido de nós,
O marido dela estava de regresso do outro lado da rua,
E eu,
E eu tinha de apanhar o cacilheiro para o primeiro beliche que encontrasse,
Corria, corria e pensava como poderia um dia desenhar nas nuvens a primeira lágrima da manhã,
Mas como sempre, não o consegui; decididamente não sei desenhar lágrimas,
Não sei o que é uma nuvem…
E o relógio, sorria-me.
Amanhã é sábado, meu amor.
E depois?
O que me interessa a mim,
A mim,
Se amanhã é sábado,
Se ontem foi quinta-feira…
Ou se daqui a uns dias será terça-feira,
Se estamos em Janeiro ou em Outubro…
Ou no Natal.
Mas amanhã é sábado, meu amor,
Pois,
Pois,
E o Alfredo que se foda,
Pensas que vou deixá-lo sozinho com uma bala nos cornos?
Amanhã é sábado, meu amor…
Não. Os meus amigos são os meus amigos. E tive-os bons…
E eu vou começar a escrever-te cartas.
Olha, cartas de amor,
Com as palavras de um transeunte das noites de Alcântara…
Terra à vista,
Barcos na algibeira,
O comboio não pegou hoje,
Deve estar constipado, meu amor,
Só pode estar constipado.
Tantas flores, meu amor,
Tantas flores que lançámos da janela,
E hoje tratam-nos como dois viciados da poesia de AL Berto…
Dos jardins de Belém,
Quando da noite…
Regressavam os Mercedes Topo de Gama,
(CD),
E eu, meu amor,
E eu apontava num pequeno caderninho…
Todas as matrículas do sono.
Dias antes de o meu pai morrer,
Enquanto retirávamos a documentação para posteriormente entregar à agência funerária…
Eu, acreditas meu amor,
Eu estava lá; eu e a minha avó Valentina.
Que coisa estranha, meu amor…
Quantos anos eu andei dentro daquela carteira.
Quantos anos…
Quantas noites...
Quantos dias e horas e minutos e segundos e milésimos de segundo…
E eu, meu amor,
E eu nem carteira uso…
E eu, e eu nem um filho tenho para deixar o seu retracto dentro de uma carteira que não uso,
Que não tenho,
Que nunca tive
E que nunca terei.
Abraçava-te sabendo que depois de percorreres a ponte…
Te lançarias para o rio.
Mas eu, o covarde de sempre…
Nada,
Eu, nada.
Deixei-te morrer.
Deixei morrer os teus poemas e as palavras dos teus poemas…
Hoje, meu amor,
Hoje sou um velho sentado numa pedra cinzenta,
Fumo os cigarros da angustia e da puta que os pariu…
Desenho barcos na areia das tuas coxas…
Escrevo poema no sorriso dos teus seios…
E sei que um dia,
Qualquer dia,
Dentro do dia,
Depois de ser dia…
Morrerei…
E vão dizer,
Sim, meu amor,
Vão dizer que naquela pedra cinzenta,
Naquela pedra de ninguém…
Era a pedra onde se sentava o poeta dos sonhos.
Alijó, 03/05/2023
Francisco Luís Fontinha