18.08.22
Lamento muito, mas o senhor tem cancro.
- Não lamente, doutor, porque eu só quero voar!
Voar?
- Sim, doutor, voar em direcção ao mar…
Desciam as nuvens sobre a aldeia quando uma pincelada de luz poisou sobre o silêncio e na despedida, no final da tarde, ouviam-se os primeiros gemidos dos gonzos enferrujados da insónia, depois, percebemos que tínhamos acordado dentro de um cubículo desabitado e que antes de nós, pelas frestas que nos olhavam através das tristes paredes, tinha pertencido ao poeta suicidado.
- Morreu de quê, doutor?
Enforcou-se nas palavras…
E das palavras se alimentou durante mais de quarenta anos, até que numa alegre tarde de Inverno, junto à lareira, percebeu que essas mesmas palavras eram o veneno invisível que todas as manhãs acordava a seu lado,
- Mas… doutor, eu apenas quero voar… sim, voar em direcção ao mar…
E percebeu que além das palavras, e percebeu que além dos livros, e percebeu que além da doença, tudo em comparação com a possibilidade de voar, em direcção ao mar, eram apenas pequenas sombras que todas as noites dormiam sobre o cacimbo da infância.
E um dia, dos calções, acordou a luz.
- Que descanse em paz,
Como se a morte não fosse o eterno descanso de duzentos e seis ossos e trinta e dois dentes. Mas ele, teimoso, apenas queria voar em direcção ao mar, e que desciam as nuvens sobre a aldeia quando uma pincelada de luz poisava sobre o silêncio, até que uma pequena lâmina de saudade se abraçava a ele, como se a morte não fosse o eterno descanso da puta da pesadíssima enxada da vida,
- Barcos ao fundo.
Silêncios ao alto.
E entre apitos doirados, socalcos e vinhedos, o velho comboio quase a merecer a tão desejada reforma, dançava ao som do pôr-do-sol como se fosse um menino a brincar nos pequenos charcos após as chuvas endiabradas das manhãs de intenso calor. E ele, ainda sentado sobre uma pausa de cansaço, perguntava-me,
- Falta muito, doutor?
E claro que não, claro que não… estamos quase.
- Não lamente, doutor, porque eu só quero voar!
Voar?
- Sim, doutor. Voar como voam os sonhos nas mãos desejadas do sono.
E que do sono se faça a luz; segredava-me ele enquanto vestia as asas silenciadas pelas tempestades de areia numa qualquer longínqua praia em que apenas os pássaros podiam dormir antes de acordar o luar.
- Sim, doutor, voar em direcção ao mar…
Alijó, 18/08/2022
Francisco Luís Fontinha