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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


27.04.16

Tenho um esqueleto amaldiçoado; sinto-o quando os ombros se cruzam na madrugada.


Tenho a certeza que amanhã serei capaz de voar sobre os sobreiros da tempestade,


Como um pássaro enlouquecido,


Como uma nuvem sem destino


Quando o poço da tristeza inventa desenhos na areia da insónia.


Pego nos cigarros amachucados pelo prazer,


Pego no livro estacionado sobre a minha secretária,


Que me espera, todas as noites, antes de adormecer.


E este madito esqueleto não se cansa de ranger,


Sei que todas as flores do meu jardim não me pertencem,


São alugadas, algumas, e outras, e outras emprestadas pela vizinha do terceiro direito,


Estão à minha guarda como uma criança entre círculos e palavras no recreio da escola,


Os vidros da inocência que parti com uma bola desenfreada,


As pedras que atirei aos vidros substituindo a bola desenfreada,


O silêncio da sebenta escondida na pasta,


A bata que trazia nunca regressava com todos os botões,


Os joelhos rasgados,


Os cotovelos ensanguentados…


Mas era feliz assim, como hoje sou feliz assim.


Com o esqueleto amaldiçoado,


Transparente verniz que cobre a minha pele,


Poema que deito no lixo porque não gosto dele,


Este ainda não o sei,


Talvez no final vá fazer companhia ao túmulo dos Deuses Sagrados,


Caderno pérfido, esferográfica mais parecendo uma enxada… e ao longe o Douro encurvado nas coxas da montanha,


Desprezo-me,


Não me apetece cortar o cabelo, não me apetece desfazer a barba…


Dizem que sou um vagabundo,


E sou-o.


Uma cidade esvairada, uma campânula nas festas de aldeia,


Tenho um esqueleto amaldiçoado, é pobre, é velho, e mesmo assim tenho de o transportar de aqui para ali e de ali para aqui,


Loucos,


Loucas,


A boca quando dos lábios brota a Primavera,


Quando o fogo incendeia o meu corpo e só o mar consegue sossegar-me deste esconderijo nojento, obsceno, ridículo,


Tenho noites assim, tenho noites desgovernadas pelas fotografias da minha infância,


E apenas sinto os barcos a passearem-se junto a mim,


O meu cão ladra,


Não me apetece cortar o cabelo e desfazer a barba…


Porque sou um vagabundo que tem um esqueleto amaldiçoado.


 


 


Francisco Luís Fontinha


quarta-feira, 27 de Abril de 2016

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