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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


21.05.11

(Hoje dei-me conta que estou a mais neste País, hoje percebi que a angustia que sinto ao acordar, hoje percebi que a minha nunca adaptação, tudo isso, tudo isso porque eu nunca devia ter vindo de Angola. Hoje percebi que preciso de regressar urgentemente à minha terra, e mudar de vida. Logo que tenha uma oportunidade de regressar, acreditem que não hesitarei um único segundo; decidi regressar a Angola)


 


Vou à procura de mim em todas as ruas da cidade, e todas as ruas da cidade encerradas para obras, reabrirmos o mais breve possível, fim de linha, eu cansado e com o camuflado a pingar lágrimas, sangue que aos poucos se evapora da minha pele, e nos meus olhos, nos olhos passeiam-se grãos de areia que na praça de táxis esperam pela minha sombra, e onde está a tua sombra, a minha, sim, sim a tua sombra, a minha sombra longe do meu corpo, a minha sombra junto ao capim, e o teu corpo, o meu corpo aos poucos desce pelos socalcos do douro, sinto o cheiro do rio, sentes, sim sinto, e depois, e depois já sem forças, e depois vejo o meu corpo despido do camuflado, vejo o meu corpo a afundar-se no rio, e o rio, o rio engole-me, acreditas que o rio sempre me quis, e o capim, o capim adormece no silêncio da noite, e sabes, e sabes que as gaivotas brincam com a minha sombra.


 


Vou à procura de mim em todas as ruas da cidade, vais, vou, ainda te recordas do menino que acreditava voar, sim claro, e todas as noites olho pela janela, e sabes, sim diz, vejo sempre o mesmo cavalo branco com uma mulher vestida de branco, eu menino ao portão do quintal a fabricar desejos, e ela, ela passava por mim, ela passava por mim e nem se dava conta que o meu corpo lá, o meu pequenino corpo pendurado no portão, o meu corpo ainda invisível, o meu corpo transparente à espera da chuva do fim de tarde, vou à procura de mim e não me encontro, eu não lá, o meu corpo deve passear-se por alguma lixeira de Belém, talvez, talvez agora âncora do navio que me trouxe, vieste de navio, sim, sabes, não, diz, foi a viagem mais linda que fiz, o mar, eu dentro do mar à procura da terra prometida, e os camuflados, que tem, os camuflados levavam-me a passear pelo barco e davam-me presentes, vinham felizes, vinham para casa, eu, tu, e eu triste, a minha casa lá, a minha sombra lá, lá junto ao capim em brincadeiras com as gaivotas.


 


E todas as ruas da cidade encerradas para obras, reabrirmos o mais breve possível, fim de linha, aguarde um momento por favor não desligue, tim tim tim, só mais um momento, aguarde por favor, tim tim tim, só mais um momento, não desligue, e o meu corpo onde andará hoje, a esta hora, hoje agora, só mais um momento, não desligue aguarde, tim tim tim, só mais um segundo, peço desculpa pela demora, não faz mal, lamentamos mas o seu corpo não cá…


 


 


 


(texto de ficção)


Luís Fontinha


21 de Maio de 2011


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