08.10.22
Meu querido Fernando,
Atravessaste o rio Congo sem que ainda hoje perceba porque o fizeste. Porque te escondias, meu querido Fernando? Dos pássaros, como eu hoje, das fotografias que trazias na algibeira e que nessa altura ainda não tinhas a minha? Ou escondias-te apenas do silêncio…
Sabes, meu querido Fernando,
Levavas-me a olhar os barcos gordos que descansavam no porto de Luanda, pegava na tua mão e sentia-me o menino dos calções mais feliz de todos os meninos dos calções, depois, entre pedaços de silêncio, perguntava-te porque…
Porque choram as acácias, pai?
Dizias-me que tinham sono, dizias-me que era devido à distância entre a lua e a terra, mas meu querido Fernando, nunca me disseste que as acácias choravam porque estavam tristes, porque estavam tristes, meu querido Fernando. E apenas muitos anos depois percebi o que era a tristeza,
Voavam como ninguém. Manhã cedo pegavas na Bedford e passeavas-te pelos musseques em busca de não sei o quê, tal como eu hoje, tal como eu ontem, tal como eu amanhã, mas nunca percebi porque atravessas-te o rio Congo em direcção ao nada,
Fugias de quê, Fernando? Das acácias, meu querido?
Lembras-te Fernando, quando cismei que queria escrever na tua carta de condução e poisaste devagarinho a tua mão no meu rabo, mas sabes meu querido, teimoso como sou, teimoso como era, de nada serviram as tuas palmadas, porque o que eu queria mesmo era escrever na tua carta de condução.
Depois comecei a rabiscar nas paredes do quarto, da sala, casa de banho e afins; tudo o que fosse parede, o menino dos calções desenhava, deixava a sua marca. E ainda hoje, meu querido, e ainda hoje…
Os pássaros partiram e levaram todos os barcos gordos, dos caixotes em madeira, sobejaram apenas algumas letras em tinta encarnada onde se podia ler PORTUGAL; e de Portugal enviamos um grande beijinho para todos, e uma linguiça para não se esquecerem dos sabores da nossa terra.
E sabes, meu querido Fernando, nunca entendi porque atravessaste o rio Congo em direcção ao nada, do que fugias, meu querido?
Das lágrimas das bananeiras? Da tristeza? Das acácias?
E havia sempre um pedaço de papel poisado sobre a mesa. Havia sempre um barco encalhado dentro de mim, dentro de ti, dentro dela…
Barcos, meu querido. Barcos.
A Bedford engasgava-se, o avô Domingos passava horas a passear um velho machimbombo pelas ruas de Luanda, a mãe passava as tardes a construir papagaios em papel e eu, o menino dos calções, passava as tardes a fazer vestidos para o meu grande amigo chapelhudo. Mas, meu querido Fernando, do que fugias? Como eu…
Atravessaste o rio,
Tínhamos medo das acácias, tínhamos medo do sono que o cacimbo provocava em nós e nos transportava para as pequenas sílabas do capim envenenado pela saudade,
E anos mais tarde, como tu, meu querido Fernando, fui obrigado a mentir-te, fui obrigado a dizer-te que estava tudo bem, mas não estava, meu querido, como poderia estar se já tinhas a morte suspensa nos ombros. Menti-te, depois fui obrigado a mentir à mãe, pela mesma razão,
Desculpa meu querido, desculpa ter-te mentido, mas foi melhor assim,
Olhava-te como quando me levavas a ver os barcos gordos, só que tu te afundavas aos poucos, e os barcos gordos dançavam sobre a ondulação marítima. Minutos intermináveis que pareciam dias, cigarros, cigarros, cigarros de mentira.
E enquanto te afundavas no Oceano da dor e das chagas que alimentavam o teu corpo, recordava as manhãs de Domingo junto aos barcos gordos, recordava a Bedford amarela, de musseque em musseque, e ao longe, o rio Congo.
Depois, desapareceste entre as nuvens. E nunca mais te vi.
Sabes, meu querido Fernando, nunca percebi porque atravessaste o rio Congo, mas percebo hoje porque trazias na carteira a fotografia da avó Valentina e a minha; e mentia-te. Escrevi a mentira em vós para enganar a saudade; e claro que não estava tudo bem.
Como poderia estar tudo bem se os barcos gordos hoje são apenas sucata e pedaços de limalha.
Porquê, meu querido?
Porquê as acácias?
E dentro dos cigarros em metástase, ouviam-se as lágrimas das tardes junto ao teu leito; desculpa a mentira, meu querido; mas acredita que estava tudo bem.
Tudo bem, como hoje.
Alijó, 08/10/2022
Francisco Luís Fontinha