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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


02.05.23

São as flores do meu jardim, são as palavras em flor, que semeio no meu jardim, são as flores do meu jardim e as palavras em flor que semeio no meu jardim as responsáveis pelo aprisionamento do teu sono, e tudo isto,

E tudo isto enquanto a terra não se cansa de girar, gira e é tão gira e é tão bela, a terra ou o meu jardim ou outra coisa qualquer…, gira em torno de um eixo imaginário, roda à velocidade de trinta quilómetros por segundo,

E, no entanto,

As flores do meu jardim e as palavras que semeio no meu jardim, estão lá, quietinhas, e o teu sono,

Escondido na minha mão,

Depois, depois pego no sono, coloco-o cuidadosamente nos teus lábios de mel, olho-te, olho-te da mesma maneira que olho o mar…

Em pequenos silêncios,

No teu cabelo, os maravilhosos barcos em papel colorido, e depois de poisar o sono nos teus lábios de mel, afago o mar do teu cabelo, separo os barcos rapazes dos barcos raparigas, e espero,

Espero que acorde o pôr-do-sol.

Desenhas um sorriso na alvorada, uma âncora de néon que não me deixa construir todos os meus papagaios em papel que ainda me faltam construir, e são tantos, ainda, meu Deus… tantos papagaios em papel,

Da janela nada virá. Nem regressa o vento das tempestades de silêncio, nem regressam as papoilas da clareira, nem tão pouco, vê tu, meu amor, nem tão pouco regressarão as primeiras lágrimas da madrugada,

E se eu pudesse,

O sono sorri-me,

O teu sono, claro,

O teu sono sorri-me, eu sorrio-lhe, e o filho de ambos,

Sorri,

E das suas gargalhadas, vejo o meu sono e o sono dela e o sono de ambos, todos, em busca de um pedacinho de mar (e de outro sono) com odor a desejo, a música, a música bloqueia-nos as mãos, e momentaneamente, e momentaneamente é impossível escrever um abraço na janela do prazer, os cigarros vão matar-me, mas pensando bem, tudo nos mata, até porque todos nós nascemos para morrer,

E uns morrem mais depressa de que outros, mas o que interessa,

Todos morrerão, como morreram as minhas sandálias em couro que usava na minha infância, em Luanda.

O barco, cansado, um barco rapaz, salta do mar do teu cabelo e deita-se junto a nós, aos nossos pés, ainda seguras o pedacinho de sono nos teus lábios de mel e em breve uma nova alvorada nascerá com as palavras semeadas no meu jardim, gosto deste quadro, gosto deste quadro que não me canso de o olhar a que dei o nome de paixão,

O barco, o barco rapaz, coitado dele, o barco, o barco rapaz, sabe que brevemente todos os buracos negros deixarão de ser negros (não será esta uma forma de racismo? Buracos negros…) tantos, olha tantos…

E são tão belos e mágicos e tudo o mais, todos os buracos negros do Universo, e vê tu, meu amor, dizem que existe no Universo quarenta quintilhões de buracos negros, meu amor, quarenta quintilhões…

(nem o vizinho do segundo esquerdo com o seu berbequim faria tantos)

E, no entanto, guerreamos por milímetros de terra em comparação com o tamanho de todos estes buracos negros e o próprio tamanho do Universo, vês, vês agora porque penso tanto?

Da terra virá, um dia, ou talvez já cá esteja, o nosso Salvador; tudo isto, tudo, para te dizer, que talvez nessa altura já não exista cá nada,

Nem flores, nem poesia, nem tão pouco o silêncio, olha

E nem o dia…

Quem diria,

Que um dia,

Qualquer dia…

Ele virá nos salvar,

Mas… salvar o quê? Quando tudo já desapareceu…

Deitava-me no chão, no chão da minha infância, depois, de barriga para o ar, olhava a copa das mangueiras e sonhava,

Sonhava, escrevia, desenhava… e tudo apenas com um simples olhar, o avô Domingos

Luisinho.

E eu, nada.

Luisinho coisa alguma, pois chamo-me Francisco, fui baptizado e meço um metro e setenta e cinco centímetros,

(diga-se que o meu avô Domingos era a pessoa mais teimosa que eu conheci em toda a minha vida),

E quando me olho no espelho

Eu, nada.

Baptizado, tu?

Sim eu, sim…

Tenho as fotografias…

Olha… eu também tenho fotografias da lua

E?

E nunca fui à Lua.

O avô Domingos escondia-se entre os machimbombos, e eu

Eu, nada.

Sentado no chão a imaginar como poderia construir um jardim de silêncio no cabelo da minha mãe,

Mas, confesso, que até hoje, não fui capaz de construir esse jardim de silêncio no cabelo da minha mãe,

Acabou por perder o cabelo, levado pelo vento numa noite de luar…

Para o meu mar,

Não estou arrependido, não.

E enquanto podia estar a beijar-te loucamente, enquanto podia escrever no teu corpo todos os poemas que ainda não escrevi,

Penso.

Mas penso em quê?

E quando descobrirem que afinal Deus, o todo-poderoso, criador do céu e da terra e dos buracos negros (quarenta quintilhões de buracos negros), é afinal uma mulher?

Silêncio na sala,

Ai e tal,

Não gostaram,

Quando pensavam que Deus era homem, tinha tesão, e, no entanto, como poderia um homem desenhar e criar

A mulher…

Nenhum homem conseguiria desenhar e criar a mulher, poder podia, mas com tanta perfeição,

Não, não podia.

E de agora em diante,

Deus é uma mulher,

Porque apenas a mulher consegue de um pedacinho de nada, pouca coisa minúscula em comparação com os quarenta quintilhões de buracos negros que existem no Universo ou com os cerca de duzentos a quatrocentos biliões de estrelas existentes na nossa galáxia,

E, no entanto,

De um pequeno pedacinho, um quase nada de nada, acorda na tela da vida, o mais belo ser, de tudo e de todos e de todo o Universo,

O seu filho.

Filho, filha, que brincou, que passava tardes inteiras a rabiscar na parte esquerda do útero, pequenos círculos, pequenos quadrados, alguns números e letras,

E eu que o diga,

Passei lá tardes infinitas…

Como o Universo?

Como tudo na vida, meu amor.

O avô Domingos, sentado numa cadeira, porque tinha sofrido um grave acidente e uva muletas, eu, rapazote irrequieto e pior de que o Diabo, segundo a minha mãe, roubava-lhe as muletas e corria, corria, corria…

Até que…

Não tinha mais quintal para correr,

Luisinho. Luisinho.

E eu, nada.

Não é comigo.

O meu nome é Francisco.

Como sempre.

A alvorada ergue-se no mar do teu cabelo, os poucos barcos que ainda restam, um barco rapaz e dois barcos raparigas, olham-te, como eu te olho, e o desejo de ambos é o mesmo,

Luisinho.

Nada.

Depois, espalho o sono nos teus lábios de mel, muito devagarinho, em silêncio, até que adormeces na minha mão,

E sei que Deus, afinal, é

É uma mulher.

Só poderá ser uma mulher…

 

 

 

 

 

Alijó, 02/05/2023

Francisco Luís Fontinha


29.04.23

Vou contar-te uma história.

Uma história?

Sim, uma história…

Há muitos anos,

Muitos?

Sim, muito, muitos…

Havia um menino, o menino dos calções, que desenhava no mar barcos em papel e tinha no tecto onde dormia, estrelas, estrelas que falavam,

Que fixe, estrelas que falavam!

As estrelas falam?

Nem todas, estas sim.

O menino passava as tardes debaixo da sombra das mangueiras a sonhar, sonhava que um dia, um qualquer dia, voava, que um qualquer dia todo o mar era só dele, sonhava, sonhava muito,

O que é sonhar?

Sonhar…

Sonhar é vestir-se de pássaro, e

Voar.

Sonhar é vestir-se de pássaro e voar sobre a cidade, quando a cidade, toda a cidade, está escondida no cacimbo, sonhar é vestir-se de pássaro e voar em cada manhã que acorda, quando o sono já dorme,

Também posso vestir-me de pássaro e voar?

Sim, claro, claro que sim… e deves.

Um dia, o menino dos calções e das estrelas em papel, um qualquer dia, descobriu uma caixinha muito pequenina, muito

Muito, muito?

Sim… muito pequena, e nesse dia, um qualquer dia, tentou abrir a caixinha, tentou, tentou… até que consegui,

O que tinha a caixinha?

Olha… um coração,

Um coração?

O que é um coração?

Bem…

Para mim, que estudo engenharia mecânica e que nunca serei engenheiro, o coração é uma bomba, apenas isso, uma bomba que não se cansa de trabalhar, noite e dia, dia e noite, até que um dia, qualquer dia, pára. Para outros, o coração é amor,

O menino pegou com muito jeitinho no coração, olhou-o como se olham as flores, com muito cuidado (olha, nunca trates mal as flores)

Porquê?

Porque as flores também sofrem… e precisam de amor e carinho, tal como as estrelas que falavam e que brincavam todas as noites no quarto do menino dos calções e das estrelas em papel,

E enquanto o menino fazia festinhas no coração, este… este sorriu-lhe e disse-lhe

Olha, gosto muito de ti.

O menino não queria acreditar, e desde então, até hoje, o menino tinha sonhos, vestir-se de pássaro e voar…

O menino acreditava, que um dia, um qualquer dia, o mar lhe entraria pela janela, e o levava para muito longe, onde outros meninos, também eles com calções e que tinham estrelas em papel no tecto do quarto e que também elas, como as do outro menino falavam, seria sempre o menino dos calções,

E hoje, ainda é o menino dos calções?

Não, não…

Com os anos, o menino deixou de se vestir de pássaro e de voar…

E a cidade que se escondia dentro do cacimbo?

Está lá…

Está lá, muito longe… tal como as asas do menino dos calções e das estrelas em papel.

Nunca deixes de te vestires de pássaro e voar…

 

 

 

 

Alijó, 29/04/2023

Francisco Luís Fontinha


20.04.23

Da janela ouvem-se os passos apressados dos transeuntes que acabam de regressar da ribeira da paixão, uma cesta com flores dorme suavemente junto ao parapeito, sobre uma pequena mesa de insónia, pego na tua mão, olho-te, tu olhas-me, e acabamos de construir duas estátuas de sono, suspensas pelo olhar,

Amar-te-ei, dizes-me

Amar-te como se amam as palavras quando o poeta as semeia numa pequena e simples folha em papel,

Depois,

Da janela, da minha janela, onde passo as tardes a contabilizar a entrada e a saída de todos os barcos rumo ao desconhecido,

Amas-me?

Perguntas-me enquanto pego na tua mão e na ausência de um crucifixo suspenso nesta parede em gesso e olhos de saudade,

Saudade,

O que é saudade, meu amor?

De ti,

Oiço-te quando se ergue a manhã na alvorada do cansaço, podia escrever-te quando esta começa, mas prefiro deitar a cabeça no teu peito, cerrar os olhos… e inventar um pequeno sorriso nos teus seios.

Alguém se esqueceu de mim, ouvia-se-lhe daquela boca semiaberta mais parecendo o porão de um velho petroleiro, que durante os fins-de-semana deambula pelo corredor da casa.

Não temos vidros nas janelas. A porta de entrada, de tão velha e rabugenta, agora começa a padecer do maldito reumático e outras coisas mais,

As coisas que eles inventam, quando se trata de reconhecer a verdade de um sorriso e o silêncio de um olhar.

Podia.

Mas não quero.

E claro que podia,

Podia escrever-te quando se ergue o dia, podia deixar as minhas últimas palavras sobre a fronha da almofada, podia encharcar-me de shots e voar sobre o mar, podia vestir-me de palhaço e de terra em terra… fazer fortuna.

Vê lá, menina do mar… até podia ser uma abelha e de flor em flor, tal como o palhaço, fazer fortuna. Mas fortuna não é comigo.

Não nasci para ser rico. E de rico nada tenho.

Não sou rico em peso.

Não sou rico nas palavras.

Perguntas-me o que fazer à cesta com as flores; deixá-las dormir ou acordá-las…

Tanto faz.

Daqui a alguns dias, nem flores são.

São uma sombra de beijos junto às amuradas e que nas mãos transportam a solidão.

Porquê eu, perguntas-me…

Porquê ele?

Vou desenhar-te,

Como assim, desenhar-me?

Tanto faz,

Sabendo que da minha janela oiço o silêncio travestido de Diabo e que Deus anda a brincar com as minhas mãos, podia, claro que podia

Mas não o faço.

Alegre-te meu rapaz!

Olha, perdeste o comboio para Belém.

Porque choravam as acácias nunca me respondeu ele.

Mas também o meu pai era um pouco estranho…

Como tu?

Eu, eu estranho?

Vestem-se de cinzento e vão todas as manhãs de sábado para a feira do Relógio vender quadros pintados à mão, desenhos desenhados com o olhar… e poemas pincelados com os lábios

Os beijos?

Magoados beijos de alecrim.

Mais tarde, depois do almoço, visitava-nos o senhor Alfredo, um charlatão de um gato e um gato em penhoras de ausência

Amas-me?

Da rua contígua ouvem-se os passos apressados dos exilados poéticos, que por razões de paixão tiveram de abandonar a cidade,

Até que um dia o relógio de parede nunca mais se ouviu;

Morreu de saudade, conclui o médico legista depois de efectuar a referida autópsia.

Coitado do velho relógio,

Coitado dele.

Primeiro as pessoas,

Depois as pessoas,

Mais tarde,

O sino encerra a palestra dos tristes dias em poesia.

Desenho nos teus lábios o beijo, escrevo no teu peito o mais belo poema de amor, como se apenas os poemas de amor fossem belos, quando tu sabes que…

Me amas?

Quando tu sabes que a beleza existe até nas palavras mais ruins…

O que entendes por palavras ruis, meu amor?

Palavras.

Tristes palavras do teu olhar.

E enquanto acaricio o teu corpo, uma lâmina de chuva de estrelas brinca na tua mão, tenho a certeza que quando pego nela, que quando aprisiono a tua mão, o meu corpo se traveste de paixão e apenas acorda quando um pedacinho do mar dos teus lábios poisa nos meus lábios,

E do mel dos teus lábios,

As abelhas,

Em flor,

Da tua mão,

Meu amor.

O mar está revolto, as minhas mãos trémulas seguram este copo de uísque, na outra mão o maldito cigarro que não se cansa de mim nem eu me canso dele,

Ainda fuma, senhor Francisco?

Olhe para ela…

Pois olho, doutora, pois olho…

Ela nunca fumou!

E morreu.

Deito-me.

Abraço-te no silêncio da noite enquanto sei que um qualquer poeta/jardineiro tratará do teu belo jardim, como se os jardins fossem eles todos belos, como são belos os poemas de amor.

Do teu cabelo, a minha mão de mamífero desengonçado,

Milhafre negro,

Olho encarnado.

Mais tarde, quando acordávamos, um fio de sémen escondia-se sobre o rendado lençol da manhã na companhia de outros fluidos,

Da mecânica,

Escondias nos seios a equação de Bernoulli, da tua mão, meu amor,

Tarde demais.

Um dia serei.

Ontem fui.

Não quero mais esta esta ausência de silêncios e de fotografias sobre a secretária,

Imagina-me sentado em frente ao mar…

Imagina-me poisando a cabeça no teu peito, e com os meus lábios, desenhar o mais belo pôr-do-sol,

Consegues imaginar, meu amor?

Claro que não,

Claro,

Não consigo.

Peso-me. Cinquenta e nove quilos, e com mais olhos de que barriga

Fui.

Parti em direcção ao nada.

A ausência.

A primeira palavra dita; filho da puta

O senhor prior não queria acreditar,

O meu avô Francisco a ser baptizado com dois anos e quando o senhor sacerdote o lança à água

Filho da puta.

Tal pai, tal filho

Onde me esperas, meu amor?

Escrevo-te sem saber que te escrevo.

Mato-me todas as noites

Ainda não morri.

Da janela ouvem tiros, berros e…

Deus queira, ajuda-me meus Deus

E Deus não a ajudou.

Nem a ele nem a ela.

(que se foda, que me desculpem aqueles que…)

Martírio destino, jardim dos enforcados.

Depois,

Beijo-te loucamente na presença do raioso Sol de Primavera.

Amar-me-ás?

Sei-te lá,

Ouvia manhosamente na parada em plena formatura,

Esquerda,

Direita,

Destroçar; viva o amor e o silêncio daqueles que se amam em silêncio.

Destroçar do dia,

Destroçar da noite,

Apenas destroçar.

Eles vão morrendo, eles vão ficando loucos, e percebo que os pássaros da minha infância já não existem.

Que tragédia, menina.

Que tragédia…

Matou-se porquê?

Sabes, meu amor?

Não.

Diz.

Ninguém me vai afastar das tuas palavras.

Depois,

Beijo-te loucamente na presença do raioso Sol de Primavera.

Amar-me-ás?

Sei-te lá,

Até que um dia os meus poemas sejam as inscrições das lápides daqueles que ainda vão nascer.

E de menino dos calções

Hoje

Nada.

Nada.

Hoje.

Amas-me, meu amor?

Até que o vento me venha buscar.

 

 

 

Alijó, 20/04/2023

Francisco


12.04.23

Já ninguém escreve cartas. Já ninguém escreve cartas de amor, cartas perfumadas… papel com corações, janelas que se abriam e só se encerravam depois da alvorada.

E enquanto escrevia cartas, sentia no rosto os pingos da ausência, sentia no rosto as lágrimas embalsamadas das cartas que escrevia, das cartas que guardava, já ninguém escreve cartas, já ninguém… me envia cartas.

E às vezes, muitas vezes, pergunto-me se recebesse cartas… o que faria eu?

Provavelmente, não as abria.

Enterrava-as junto ao mar, ou muito mais simples, queimava-as antes de abrir.

Uma vez por semana, esperava o regresso do carteiro, que me trazia uma carta perfumada, uma carta escrita na alvorada, hoje, hoje já ninguém escreve cartas, já ninguém escreve cartas de amor.

Cartas perfumadas. Papel com corações desenhados, fotografias a preto e branco, um telefonema de dois em dois dias… e claro, uma vez por semana, o amigo carteiro trazia-me cartas, cartas perfumadas, cartas de uma ausência, a minha, quase sempre não as lia, quase sempre as guardava na gaveta dos sonhos, por abrir; depois, dias depois, quando eu regressava das minhas viagens à lua, abria-as todas, uma por uma, e enganava a ressaca com as palavras de amor que recebia.

Ai as cartas, as cartas perfumadas, as cartas da ausência, nas cartas onde me escondia, nas cartas onde eu sabia que tinha um abraço, um beijo, um… quase nada.

Cartas.

As ausentes e as remetidas, as cartas recebidas e expelidas contra o sono, e durante toda a noite ouvia o ranger dos meus ossos, e durante a noite

Cartas, recebia cartas.

Aos ausentes, aos mortos que ainda hoje, alguns, me enviam cartas.

Cartas perfumadas, cartas de uma ausência enquanto a noite entrava em mim e sentia no meu corpo as amarras do cansaço, e sentia no meu corpo o brotar das flores de aço e dos pregos que aos poucos,

Das cartas em sono,

O meu regresso da lua.

Coitadas das cartas, coitadas…

Hoje, hoje já ninguém escreve cartas;

Cartas de amor.

Cartas perfumadas.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

12/04/2023


07.04.23

Tudo é culpa minha, a chuva, é culpa minha, a tempestade… é culpa minha, as palavras que escrevo, são uma merda, culpa minha, as flores têm um odor a putrefacção, culpa minha, claro,

As vidraças da minha janela, partiram-se, e claro, culpa minha,

O silêncio, também é culpa minha,

E depois?

A morte, as pessoas de quem gostava e morreram, claro, foi por minha culpa.

A tristeza, é culpa minha, a fome, tantas crianças com fome, é culpa minha,

Olho as minhas mãos, percebo delas o quanto silêncio existe, percebo delas a míngua tristeza das sanzalas com telhados em zinco, e quando oiço os mabecos, entre uivos e pincelados corações de prata, eis que um alicerçado e cansado amanhecer se deita sobre mim…

E depois?

Tudo, tudo é por minha culpa.

As guerras, as guerras acontecem por culpa minha. A minha vizinha do terceiro esquerdo, coitada, suicidou-se juntamente com o gato, o Malaquias… e claro, foi por culpa minha.

E enquanto olho as minhas mãos, e enquanto olho o mar amaldiçoado, tal como eu, amaldiçoado, com aquele cheiro intenso a morte, percebo que tudo o que sonhei, não o sonhei, que tudo o que tive, não o tive, e que Deus é um estupor, impostor, um aldrabão diplomado e sem escrúpulos, um gajo…

Um gajo que nunca assume os erros, e claro, tudo, tudo é culpa minha.

E por minha culpa, por minha grande culpa, me despeço destas pedras onde brincam as ratazanas de Gunter Grass, onde poisa o coração de todos aqueles que deixaram de voar, claro, por minha e tão grande culpa minha; tens fome? Culpa minha. Não tens casa onde aportar os teus braços, claro, claro, é culpa minha.

E não te preocupes com o aspirador ou com a ventoinha ou com a porta do quintal… porque, claro, tudo é culpa minha.

 

 

 

Francisco

07/04/2023

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