11.04.23
Acorrentados às frestas da manhã
O sono poisa na doce mão do transeunte ensonado
Vomita a fogueira da noite anterior
Da lareira onde arderam todas as palavras do poeta
E o poeta em dor
Sem o saber
Também ele acorrentado
Também ele ensonado
Também ele em lágrimas na fogueira da noite anterior
Senta-se na cadeira da insónia
E sonha
E pensa.
O que pensará o poeta acorrentado?
Que as noites são pedacinhos de pano
Em pequenas brincadeiras
Na algibeira do guarda-rios
Que enquanto olha para a ponte
Percebe que a multidão em fuga
Se dirige para o abismo?
Penso que não
Não pensando que a multidão
Toda ela
Toda a multidão
Se suicide nas mãos daquele Oceano.
Um cardume de sonhos
Viaja à velocidade da luz
Pensando que voa
Não voa
Porque enquanto pensava
O pensamento
Aquilo que o poeta pensava…
… morre quando a noite acorda.
E às vezes
Pensando que dormia no cacilheiro para a Trafaria
Acordava em Almada
Pensando que já era dia…
Quando ainda não era nada.
E para que pensas tu, poeta acorrentado?
Marinheiro das docas secas
Pedinte em decomposição
Quando do corpo putrefacto
Nasce uma gaivota de luz?
Não.
Não penses, cacilheiro dos lábios encarnados
Não penses
Não
Não bebas e não fumes e não fodas…
E claro
Não penses
Nem escrevas
O que pensas
Nem dias o que escrevas
E que pensas
Porque depois de pensares
Depois
Ai depois…
Não.
Não escrevas.
Não penses.
Multidão amiga
Pensante das madrugadas em flor
Consumidor de heroína
E de cigarros avulso
E de shots de liberdade
Junto ao rio
E se pensas
Um dia
Darás conta
Que os cacilheiros deixaram de ser os teus amigos…
Porque hoje os cacilheiros pensam
Porque hoje é terça-feira
E Lisboa é uma droga
É mulher
É bela
Muito bela
Mais bela que todas as belas das árvores da minha aldeia…
Porque pensa o poeta acorrentado?
Porque chora e pensa o poeta acorrentado
Filho da multidão
Irmão de Zeus
Irmão e pai
Dos que pensam
E daqueles que não pensam.
Amém.
A multidão pensante
Grita
Corta as correntes do sono
A multidão pensante
Pensa
Enquanto ele
O poeta acorrentado
Não pensa
Nem sabe o que pensa.
E os dias são as noites
Sãos os dias em que alguém pensa
Que quando regressar a noite
O pensamento se libertará da madrugada
E o poeta acorrentado
Enquanto bebe uísque…
… pensa
Que nunca pensou
Aquilo que pensa.
E se a multidão pensasse
E se o poeta acorrentado pertencesse à multidão
Os livros cresciam nos jardins
Como crescem as plantas de canábis
E crescem as almas que pensam.
Mas eu não gosto de pensar
Não gosto das palavras que escrevo
Nem dos desenhos que faço;
E enquanto espero sentado
Numa cadeira com tirinhas em plástico
Entretenho-me a contar as quadrículas
As brancas para o lado direito
As negras para o lado esquerdo…
… e os espaços entre elas…
Para os vizinhos que pensam
E que pensavam que nunca conseguiriam pensar.
O relógio morre.
A tua voz que pertencia aos meus pensamentos
Não pertence às vozes que pensam
Nem pensam as vozes a que pertencem…
E Deus?
O que pensará Deus!
O que pensará Deus de tudo isto?
Que sou louco
Porque desobedeço à multidão
E deixei de pensar?
E se eu pensar?
A multidão continuará junto a mim?
E claro,
E se Deus também ele,
Também eu,
Também o poeta engomado e acorrentado…
Não pensarem?
O que pensará o Diabo quando vai defecar
E percebe que o poeta acorrentado
É uma merda
Uma merda que pensa
Que fuma coisas
E bebe coisas
e…
… pensa
E que se fode o poeta que pensa.
Alijó, 11/04/2023
Francisco Luís Fontinha