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Cachimbo de Água

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...

Blog de Francisco Luís Fontinha; poeta, escritor, pintor...


30.06.11

Mulheres,


Uma duas três quatro casas decimais em volta de uma mesa de papel, na esplanada a voz submersa nos lamentos do dia-a-dia, e falta ceresitar os cabelos pendurados no sol, as ovelhas no pasto sentadas no passeio muito bem muito bem muito bem, e apoiado e apoiado, uma porque o filho não come outra com as tardias horas a que o marido atraca em casa, e outra que a ferrugem dos barcos entra-lhe pela janela e corrói o penteado da mãe, as sílabas que escorrem pelas páginas do livro de receitas da avô, o filho mais velho às cabeçadas na poeira castanha que caminha todas as tardes na prata de alumínio e a bolha no final da rua muda de direcção e mais uma voltinha e inserir a moeda na ranhura, as veias crescem como as algas e agarram-se ao casco dos veleiros estacionados à porta do vendedor ambulante, decadência de um corpo em pedaços de aço, lascas de pele que se multiplica na areia e o mar as leva, e o mar tudo leva, nos azulejos da cozinha as manchas de amarelo, o doutor Pássaro diz que deve ser fígado,


- A vida é uma merda sabes,


Cai um silêncio na esplanada,


A barriga inchada e as pálpebras a transpirarem junto aos choupos, a ribeira cruza-se com a esquina da pastelaria, uma chávena levanta do pires e abraça-se ao batom dos lábios, o vermelho lacerante das pétalas de rosa, o doutor Pássaro em receituário estremunhado faz prescrições de Lamivudina AMPDR 300 miligramas duas vezes por dia e descanso, descanse que quando der por ela a hepatite pela sarjeta em postas de bacalhau, na tasca os copos vazios em fileira à porta da repartição, os homens de pila murcha esperam e desesperam, e o gordo por detrás do balcão abraçado ao garrafão de branco e o branco recusa-se a abrir as portadas para o jardim, os clientes desesperam e nos cigarros acende-se a esperança na secura das horas,


- Tenho a impressão que o meu marido tem uma amante,


A secretária do doutor Pássaro,


Deitada na marquesa à espera que o paciente termine a radiografia à vesícula, não respira e só mais um pouquinho e sorria e sorria, e a vesícula da menina Gaivota presa no soutien, e que chatice diz ela emersa nas mãos do paciente impaciente senhor Gavião que lhe limpa as gotinhas de suor das estrelas dos seios e que chatice esta chuvinha no final da tarde, as chávenas e os pires em passo apressado para o interior adormecido da pastelaria,


- Não sai do consultório do doutor Pássaro,


O fígado incha na clarabóia da noite,


O capacete do militar às cabeçadas no muro de betão e em gritos escrevia nas nuvens de Belém FIZ MERDA FODI-ME, o enfermeiro de porta aberta em leituras de jornal, e em cada dor diferente a mesma rodela amarela, e eu questionava o enfermeiro que ainda ontem tinha tomado uma rodela igual para a dor de cabeça e ele em resposta de artigo dizia-me que SERVE PARA TUDO, diarreia bicos de papagaio reumatismo estômago, e de dentro do frasco de vidro as rodelas amarelas olhavam-me, e eu quando na noite adormecia com a garrafa de vodka à cabeceira o enfermeiro pela manhã à minha espera na parada com a rodelinha amarela para a formatura, botas engraxadas e barba desfeita e uma mísera gravata suspensa no pescoço, o chão betuminoso começava em rotações salientes e às vezes eu quase que tombava, e às vezes ouvia o Tejo que me chamava e eu, eu corria em seu auxilio, o doutor Pássaro a vesícula da menina Gaivota e o paciente senhor Gavião à minha espera na esplanada, eu sentava-me e confundia as conversas com os barcos que regressavam de longe, trocava a vesícula por hepatite e de vez em quando ouvia eles falarem nas gotinhas de suor das estrelas dos seios, e nunca até hoje percebi o que isso quer dizer; poisava a chávena no pires e num cigarro de trovoada deixava os olhos nas carruagens do comboio para Cascais.


Vinha a noite, e as putas, e as putas das noites insuportáveis quando a vodka se escondia no estômago do cansaço.


30.06.11

O corpo,


No ressequido orgasmo da manhã, as horas em silêncios dormentes, as pernas, que se esfarelam como migalhinhas de pão do dia anterior, e a rua, entupida de sombras que se abraçam aos candeeiros da tarde, o quarto absorve-o e as frestas da parede, sobre a cama, olham-no, cintila-lhe o corpo em segmentos de rectas oblíquos, o sol, cheiro miserável a cadáver esquecido no armário e espreita pela fenda do cadeado, gostas de cá andar?, pergunta-lhe ele enquanto procura as horas na algibeira, no mundo?, já gostei mais, quando os barcos brincavam no oceano, quando no verão me sentava à porta de entrada e a noite dentro da casa e as moscas misturadas em mim e na casa e na noite, sábado não posso,


- As coxas abandonadas em bancos de jardim nas mãos poisadas nos seios das árvores, o útero em combustão quando a menstruação abre a janela e do rio os petroleiros abraçados na dor de barriga, cabeça estonteada quando na noite a almofada em papel de mortalha enrola o tabaco dos fins de tarde, irrita-se comigo e fica chatinha, a neblina quando desce a calçada, quando um cão em três patas cospe o mijo contra os tornozelos dos móveis, a madeira na garganta do caruncho na garganta na película fina e branca da penicilina,


Não posso,


Subir a montanha e lançar-me como uma pedra até me cansar e imobilizar-me em segurança, pé na embraiagem das nuvens e na penumbra das algas procurar o travão das gaivotas, o corpo reduz a velocidade, o corpo encosta-se ao cais e a âncora das árvores as raízes que prendem o me corpo à terra fina e cansada e em sonhos sobre a cama atraco ao soalho de madeira, gostas de cá andar?,


- Quando o púbis empapado no vermelho da tela,


No corredor sem saída,


As portas não portas, desenhos nas paredes que fingem portas e o tecto de hora a hora desce um milímetro, o pé direito três metros de luz, o meu esqueleto cento e setenta e cinco centímetros de sombra, e é só fazer as contas, quase quase amassado e vai ao forno e bom apetite,


- Este odor a sangue quando os pincéis mergulham na paleta de cores do umbigo,


Três a quatro dias,


E a resposta teima em chegar, procuro-me nos perdidos e achados, e o meu nome não lá, nem me perdi e nem encontrado, desaparecido junto à avenida 25 de Abril de 1974, a senhora professora com o ditado da manhã,


Os pássaros são livres, e o mar é de todos e os rios voltam a correr para o mar, eu faço uma pausa e penso, e ontem os rios não corriam para o mar?, na Primavera as andorinhas com os sorrisos nos telhados do medo,


E a resposta teima em chegar, espero e desespero junto aos plátanos e os estorninhos em viagem,


- Vês já passou,


Tipo rotação da lua uma vez por mês,


O salário de um desempregado sem subsídio de desemprego, e espera-se pela transferência e nada, aguarde mais uns dias, já fizemos a transferência deve estar a receber a corda com o respectivo laço, depois, depois é uma questão de bom gosto na escolha da melhor árvore e acariciar as coxas abandonadas em bancos de jardim nas mãos poisadas nos seios das árvores, rijos, os dias de desespero.


29.06.11

E se a água se evaporar,


E o mar ficar terra ressequida?


O sol na garganta de um buraco negro


E lá dentro nada


Silêncio e a sombra de Deus


E lá dentro nada,


Não a água do mar,


Não a terra ressequida,


Não a porta de entrada,


E se a água se evaporar,


E o mar ficar terra ressequida?


Os peixes pendurados nas árvores


E lá dentro nada


As espinhas na borda do prato


E lá dentro nada,


Não a água do mar,


Não a terra ressequida,


Não a janela de saída,


Não a casa sonhada.


29.06.11

Se o teu corpo é de chocolate,


Vou comê-lo,


Vagarosamente no silêncio dos patos bravos, vagarosamente as tuas pernas que caminham na sombra das estelas, o esvoaçar dos saltos dos teus sapatos quando o passeio se cruza com a estrada, e um automóvel os meus olhos em máximos no teu corpo de perdiz à procura de palavras e eu na peugada do chocolate das tuas mãos,


- Os teus olhos brilhavam no escuro,


Acendiam-se e apagavam-se como o folhear de um livro poisado no banco de jardim,


 


Desisto, não me apetece escrever mais,


 


E o teu corpo de chocolate evaporou-se em Belém numa manhã de sábado, e por entre a feira de velharias os meus olhos pregaram-se a um boné de militar da antiga URSS e não o comprei porque parecia-me demasiadamente velho e usado, e porque deixei de acreditar,


 


Não me apetece escrever mais,


Hoje não,


29.06.11

Hoje se eu sou


Ontem não o era


Hoje um miserável dia do calendário


Um número sem importância pregado na parede,


 


E onde se esconde a parede


Que deixou de existir?


Hoje apenas um silêncio


Que separa a cozinha da sala,


 


Durante a noite a parede consumida


Pelas estrelas de papel


Hoje se eu sou


Ontem não o era,


 


E amanhã certamente não sou


O eu de hoje


O ontem de eu…


O amanhã que não existe.

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